quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O auge do cinema que filma a transcendência - Peio Sánchez Rodríguez

Estamos diante da melhor safra do cinema espiritual dos últimos anos, o que reflete o bom estado de saúde espiritual da produção cinematográfica. Embora, infelizmente, isso não afete o público em geral, que se mantém no consumo audiovisual de baixo perfil, embora cada vez mais haja um setor de público que aposta nesse tipo de cinema que agora tem à sua disposição. Vejamos a seleção deste ano.

A análise é de Peio Sánchez Rodríguez, sacerdote e professor de teologia, com especialização em educação audiovisual pela Universidade Pontifícia de Salamanca e doutorado em teologia dogmática pela Universidade Salesiana de Roma. O artigo foi publicado no sítio Religión Digital, 31-12-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
cartaz de A Árvore da Vida1. A árvore da vida, de Terrence Malick

 Estamos diante de uma obra-prima do cinema espiritual. Formalmente, ela inova a narrativa fílmica da fé cristã, já que apresenta uma história pessoal-familiar de pecado e de graça, com uma perspectiva de universalidade que se desdobra em abundantes símbolos e referências musicais da tradição religiosa. A complexa elaboração formal pressupõe tanto um aprofundamento na forma artística da experiência cristã, como aponta para aspectos de novidade. Especialmente evocativa é a presença intermitente da linguagem orante dirigida a Deus que transcende a pura narração horizontal.

A maior dificuldade reside na complexidade da montagem. Ela atua com diferentes registros que são acompanhados por uma profundidade teológica incomum, dada a amplitude de temas aborda, tais como o sentido do sofrimento inocente, a origem na bondade do real, a densidade e diferentes registros do pecado, assim como a sua transmissão social, a transparência, resistência e vitória da Graça, a possibilidade da conversão como giro à esperança, a oferta de louvor como aceitação agradecida pelo amor divino e o além como consumação pessoal e comunitária em Deus. Esse percurso globalizador pela antropologia cristã se realiza resguardando o mistério de Deus, que aparece unicamente representado pela sarça ardente do Gênesis, que acompanha a narração como chama de amor viva.

Filme imprescindível, a partir de agora, no cinema espiritual deverá ser revista para descobrir novos significados e que propõe a experiência de Deus que se comunica na arte.

2. Homens e deuses, de Xavier Beauvois

Relato poderoso e significativo e, ao mesmo tempo, realizado com uma distância respeitosa sobre a vida e morte dos monges trapistas do mosteiro de Nossa Senhora do Atlas de Tibhirine, que foram sequestrados em 1996. Os fatos se desenrolam em meio a uma Argélia conturbada entre a ameaça dos grupos radicais islâmicos e um regime militar que dificulta a reconciliação.
 
Xavier Beauvois, o diretor, baseia a sua narrativa na motivação profunda dos monges, explicitada no testamento de Christian de Chergé que se ouve no fim. A contribuição espiritual visa à reconciliação das pessoas, dos povos e das culturas a partir do diálogo das religiões fundado em Deus, que nos reconcilia em Cristo encarnado e crucificado. Para isso, o roteiro se centra no processo de discernimento pessoal e comunitário da comunidade de monges sobre a decisão de permanecer fiéis e firmes em seu mosteiro, apesar das ameaças que os rodeiam.

Magnificamente interpretado, os monges se apresentam em sua vida ordinária de oração, trabalho e inserção naquela realidade concreta, ao mesmo tempo em que se mostra o processo de cada um com suas dúvidas e certezas. Tudo isso nos permite compreender a sua decisão, em nada heroica, mas sim como um sinal lúcido e humilde de reconciliação em meio à barbárie.

O momento culminante da última ceia é uma sequência magistral em que nos é mostrada toda a carga significativa de uma mesa que vai se convertendo em lugar de perdão e alegria e, ao mesmo tempo, em altar de entrega e reconciliação. O final é significativo e esperançoso, através de uma elipse que aponta para a paz definitiva em Deus.

3. Postia pappi Jaakobille [Cartas ao padre Jacó, na versão espanhola], de Klaus Härö
Filme que acerta ao apresentar com uma enorme simplicidade formal - apenas dois atores que interpretam o padre Jacó Leila, uma ex-detenta indultada depois de uma condenação à prisão perpétua - uma história de grande força dramática e de um explícito conteúdo cristão.
Esse filme, que passou quase despercebido fora do âmbito mais especializado dos festivais, é uma pequena joia em que todos os elementos - uma fotografia sombria, um plano entrecortado, interpretações austeras e câmera detalhista - apontam para a direção de mostrar uma história que transmite verdade e emoção.

Na primeira parte, o filme vai nos apresentando a ira e a dor imensa de Leila, que pouco a pouco vai sendo domesticada pela humildade muito acolhedora do padreJacó, que vive com a missão de enviar e receber cartas de oração e de consolo para os seus paroquianos longínquos.

Na segunda parte e desenlace, assistimos a uma resolução surpreendente, que nos revela o caminho do sacrifício de amor e a reconciliação que limpa a alma para a esperança.

A enorme força espiritual reside na medida em que o padre Jacó representa o amor misericordioso de Deus que aponta para Cristo, assim como nas imagens do crucifixo e nas citações bíblicas escolhidas de forma certeira. Também é sugestiva a figura de Leila, metáfora da humanidade que precisa ser salva. Em resumo, teologia da graça e da justificação convertida em narrativa cinematográfica. Sem dúvida, um daqueles filmes que nos torna melhores.

4. Oscar et la dame rose [Cartas a Deus, na versão espanhola], de Eric-Emmanuel Schmitt
Injustamente despercebida passou entre nós Cartas a Deus, esmagado pela estreia coincidente do terrível Torrente 4: Lethal Crisis, que foi o grande sucesso do cinema espanhol deste ano.

Cartas a Deus não vende porque trata da história de um menino com câncer, como também aconteceu há um ano com Viver para sempre (2010), de Gustavo Ron, e com Maktub (2011), de Paco Arango. No entanto, acreditamos que o cinema espiritual deve continuar resistindo para oferecer um sentido quando a diversão baixa e vulgar apaga os seus artifícios comerciais.

O dramaturgo francês Eric-Emmanuel Schmitt, depois de uma experiência pessoal de fé, escreve sobre esses temas com êxito e, a partir do teatro, foi os exportando para o cinema. Assim, levou às telas Monsieur Ibrahim et les fleurs du Coran (2003) e, depois, a mais suave Odette Toulemonde (2007).

O pequeno Oscar tem um câncer terminal e será guiado por Mamie Rose, uma voluntária muito especial, para será um exemplo do acompanhamento espiritual. Assim, a partir da sinceridade, viverão intensamente uma relação que ajudará o pequeno a assumir o seu momento para se encontrar com Deus, e a cuidadora a renovar o sentido da sua vida.

Um filme, portanto, muito recomendado e especialmente interessante para o cinema familiar com adolescentes, para introduzir no tema sempre relegado da morte. E não nos esqueçamos que o cinema pode divertir abordando a vida, e não fugindo dela.

5. Thérese, de Alain Cavalier

Filme complexo e não para todos os públicos. Apesar de sua estreia na Espanha com 25 anos de atraso, o filme de Alain Cavalier sobre a vida de Teresa do Menino Jesus foi bem recebida tanto pela crítica quanto pelo público cinéfilo.

Montado como uma série de quadros de estilo bastante teatral, o filme narra a vida da santa de Lisieux e nos apresenta, com uma grande simplicidade formal, a sintonia com o caminho estreito do amor humilde dessa carmelita mestra da espiritualidade. Interpretada com grande sucesso por Catherine Mouchet, o filme descreve, com um estilo em nada hagiográfico, mas sim bem comedido e crítico, o seu chamado precoce e ingênuo, as alegrias e as dificuldades da sua vida religiosa, a chegada da doença e sua paciente serenidade perante a morte.

A narrativa vai nos adentrando no amadurecimento dessa jovem que, a partir da sua candura adolescente, se vê obrigada a um amadurecimento rápido, forjado na proximidade de Deus e na vida comunitária. A primeira é ressaltada através de algumas orações e pequenos textos recolhidos; a segunda é mostrada com eloquência em cenas como a profissão da santa, a festa do Dia de Natal ou os encontros com a irmã priora.

De difícil visualização, tanto do ponto de vista formal quanto narrativo e simbólico, precisa de acompanhamento mesmo para o público formado.

6. O garoto da bicicleta, de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne


O filme dos irmãos Dardenne está entre os melhores deste ano em quase todas as listas. Os autores de grandes obras como La promesse (1996), Rosetta (1999),Le fils (2002), L'Enfant (2005) e Le silence de Lorna (2008) continuam com a opção de apresentar a verdadeira altura humana em personagens marginais que, em meio a dificuldades, abrem caminho rumo a uma difícil bondade.

Neste caso, novamente com uma história simples: um menino é abandonado pelo seu pai, que se sente incapaz de assumir essa responsabilidade. Ele encontra uma jovem cabeleireira que o acolhe, mas sua busca por um pai o leva a uma peripécia da qual sairá amadurecido.

Assim como na tragédia grega, os personagens funcionam como arquétipos. O menino é uma figura de uma geração que tem que crescer sem pais ou buscando-os. A cabeleireira é a imagem luminosa da humanidade generosa, autenticamente enraizada na verdade da vida. O pai infantil e imaturo reflete um tipo de adultos que são adolescentes crônicos e que, neste caso, representa os pais ausentes e demissionários. O traficante é a tentação de um mundo de sobreviver destruindo tudo ao seu redor.

A simplicidade da história dá margem a muitas coisas: o pequeno lutador que, no fim, descobre o amor no qual pode confiar; a mãe arquétipo que é geradora em adoção da filiação e que transparece o amor fundante mais escolhido do que biológico; o jovem que deixar de ser agressor e permite que o pequeno faça a sua própria escolha.

Cheia de humanismo, O garoto da bicicleta é um relato para uma época que precisa recuperar a maternidade/paternidade e a filiação. Ser mãe e pai não é uma questão biológica; é uma questão de amor que deve se fundar nele. Por isso, Samantha é uma verdadeira mãe. E o pequeno Cyril, em sua peripécia, nos revela como o ser humano precisa encontrar um pai/mãe para viver na bondade. E aqui não basta a bicicleta como única posse. Este mundo precisa de Samanthas para que os pequenos Cyrils possam crescer. Por outro lado, o mistério da paternidade e da filiação sempre teve a ver com Deus, embora isso não se diga.

7. Mistérios de Lisboa, por Raúl Ruiz


Do chileno exilado na França Raúl Ruiz, esse filme é considerado, de forma bastante unânime, uma das obras mais significativas do cinema recente. Partindo do folhetim romântico de Camilo Castelo Branco, prolífico escritor do século XIX português, a história se passa em uma complexa rede de motivações e relações sob a influência de Balzac, que vão se revelando como uma espiral dramática que, na distância, descobre uma profunda reflexão sobre a natureza humana.

A excepcional realização de Raúl Ruiz parte da forma de série de televisão, para fazer uma metamorfose radical em que o relato adquire uma nova dignidade e em que os personagens mostram algumas constantes que atuam no espectador a consciência de contemplar algo das dobras da própria alma.

Somente a figura do padre Dinis permite pôr um pouco de sentido. Primeiro pela sua busca detetivesca da verdade, para depois reconhecer a sua intervenção benéfica na história, que aos poucos vamos descobrindo como multifacetada e onipresente. Filme imprescindível para o espectador formado no gosto estético da narrativa e na pesquisa antropológica dos personagens. O relato acaba perdendo a sua condição trágica, para fazer do romântico uma porta para o drama com sentido e para a vida com esperança. Mas uma espera que pressupõe paciência e esforço no observador que acaba se envolvendo.

8. Le Havre, de Aki Kaurismäki


Aki Kaurismäki é um dos grandes humanistas do cinema europeu. Esse filme entra em cartaz [na Europa] justamente no fim do ano, embora já tenha sido apresentado em diversos festivais. Como todas as histórias desse diretor, ele é narrado sob a influência dos grandes do cinema mudo, com um sentido de humor zombeteiro e sibilino, cores puras - especialmente azul e vermelho -, assim como com silêncios e elipses que anima o espectador a completar a história.

Neste caso, um engraxate, Marcel Max, saído dos filmes de Chaplin, enfrenta a grave doença de Arletty, sua abnegada esposa, e o cuidado de Idrissa, um menino negro que chegou como clandestino e que é perseguido por Monet, um policial que parece que trabalhou anteriormente para o fim de Casablanca.

Novamente, uma história de solidariedade dos pequenos, dos marginalizados. Enquanto Max luta para esconder e encontrar a família do pequeno africano, sua esposa silenciosa e praticamente sozinha enfrenta uma doença terminal. Mas, apesar de tudo e de todas as dificuldades, eles não estão sozinhos: há uma corrente de generosidade que vai se tecendo e que, surpresa após surpresa, leva a um final inesperado e feliz.

Já em Mies vailla menneisyyttä [Um homem sem passado, na versão espanhola] (2002), Kaurismäki fez alguns acenos espirituais, assinalando que o mundo que está às margens conta com a ajuda que, de fora, se converte em salvação. O fato de que, em Le Havre, os giros de roteiro apontem para o milagre reabre esse veio sobrenatural à qual tende o cinema social do diretor finlandês. Incrível mas certo é que o cinema secular europeu, quanto mais aponta  para o ser humano, mais parece se encontrar com Deus em seu objetivo. Uma lição por inteiro.

9. Em um Mundo Melhor, de Susanne Bier


O Oscar de melhor filme estrangeiro foi para esse filme dirigido por Susanne Bier, que é uma das mais promovidas representantes do extinto movimento Dogma 95. Trata-se, neste caso, de uma proposta que indaga sobre a origem da violência e as possibilidades do perdão.

Narrado com base em paralelismos, o filme define, de um lado, a violência em um campo de refugiados em um lugar da África e, de outro, o assédio escolar naDinamarca. E também coloca em paralelo o mundo dos adultos e o mundo dos jovens que se abrem à vida. Nesse cruzamento de realidades, localiza-se o drama.

Elias sofre assédio escolar de seus colegas, enquanto padece a separação que parece inevitável entre seus pais. Anton, seu pai, como médico na África, enfrenta a violência de um grupo armado e seu líder impiedoso. Cristian será o amigo que ajudará Elias com a sua dor não curada pela morte de sua mãe. A tragédia se tece quando a violência gera violência, e só uma decisão pela reconciliação permitirá que se rompa a corrente do desastre.

O filme apresenta o mal como consubstancial ao ser humano, seja na Europa ou na África, seja entre crianças quanto entre adultos. O mal escraviza com suas correntes interiores, de dentro e de fora, agarrando e fazendo vítimas e algozes que acabam reproduzindo a mesma espiral. Só o perdão que vem do céu azul pode romper a maldição.

Anton representa a força da bondade que não faz o idiota, mas que perdoa. Depois, aparecerá uma graça que vence tragédia e que permite que os processos de reconciliação se culminem. Parece que, de alguma forma, o céu cuidou de todos.

Um filme que é altamente recomendado para o público jovem, apesar da sua dureza: é esclarecedor, lhes agrada e lhes envolve.

10. Das Ende ist mein Anfang [O fim é meu princípio, na versão em espanhol], de Jo Baier


Relato comovedor do testamento espiritual de Tiziano Terzani, famoso correspondente de guerra que viveu grandes acontecimentos da história recente. O filme, baseado no livro que ele escreveu com seu filho Folco, narra com simplicidade e força expressiva o seu itinerário pessoal, centrando-se na experiência espiritual que marcará os seus últimos anos a partir do início da luta contra um câncer.

A trajetória de Terzani como jornalista e suas simpatias ideológicas pelo comunismo são postas à prova em meio a grandes acontecimentos sociais e políticos do século XX, como a Guerra Fria, a China maoísta, a Guerra do Vietnã e o apartheid sul-africano. O ocaso das ideologias marcará uma reviravolta em sua vida para a dimensão espiritual. O mundo só pode mudar se cada ser humano mudar, ele afirmará.

Em 2004, quando foi diagnosticado um câncer no protagonista, acentuou-se o seu chamado a fechar o círculo de sua vida enfrentando a morte. Depois de um retiro de três anos com um sábio no Himalaia, ele se afasta de sua esposa Angela para uma casa na Toscana. Ali, nos últimos dias, ele convida o seu filho a escrever esta espécie de testamento espiritual.

O testemunho vai se centrando em oferecer uma visão diferente da morte. Que não seja exclusivamente trágica, mas sim confiante, alegre e esperançosa. A debilidade do corpo contrasta com um crescimento do espírito que vai progressivamente se identificando com o Ser Supremo ao qual vai se incorporando. Esse processo de dissolução representa um contraste com a perspectiva cristã da ressurreição. Mas o contraste é muito sugestivo, e o caráter testemunhal o situa em uma validade especial.

Fonte: CEBI (04.01.2012)

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